O Passo da Ceia, situado na parte ascendente ao Santuário do Bom Jesus, inaugura, do ponto de vista iconográfico, a série de estações da Via Crucis de Congonhas. Sua capela merece referência especial por tratar-se da mais antiga do conjunto e a única a ser construída durante a estada de Aleijadinho em Congonhas, possivelmente sob sua orientação. Iniciada em 1799 estava concluída em 1808.
Do ponto de vista arquitetônico, a Capela da Ceia supera todas as outras em qualidade de execução e perfeição do acabamento. Seu volume externo, de grande simplicidade, se resume a quatro muros de alvenaria caiados de branco, rematados por uma cornija saliente, sobre a qual vêm morrer suavemente as quatro secções de abóbora de arestas cuja silhueta reproduz a do coroamento das torres do Santuário. A monumental porta formada de grossos pranchões de cedro em graciosos motivos assimétricos é, sem dúvida, a mais bela da série. Em sua verga insere-se pequena cartela em pedra-sabão, emoldurada por ornatos rocalha na qual se lê uma inscrição em latim, cuja tradução é a seguinte: 'Enquanto ceavam, tomou Jesus o pão e disse: Este é meu corpo' (Mateus cap.26 v.27).
As imagens do Passo da Ceia são um autêntico drama teatral, conforme a tradição barroca. Diante da palavra acusadora de Cristo 'Em verdade vos digo, um de vós me há de entregar', os apóstolos, completamente transtornados, voltam-se bruscamente para Ele e, reagindo cada qual segundo seu temperamento, indignam-se e enfatizam sua inocência, com largos gestos de mãos e de todo o corpo. Dois servos, postados lateralmente à porta de entrada, realizam a transição entre o espaço real, o do espectador, e o espaço físico no qual se movimentam os atores.
Um desses servos, o da direita, veste-se pitorescamente à moda setecentista com colete justo e casaco cintado, abotoado na frente, num dos raros exemplos de liberdade tomada por Aleijadinho com relação à iconografia tradicional, que mantém túnicas longas e mantos para os personagens evangélicos, indumentária típica das populações mediterrâneas no início de nossa era.
A identificação dos apóstolos se torna um pouco difícil, posto que nenhum deles traz atributos específicos. Apenas Judas, Tadeu, Pedro, Tiago Maior e João podem ser reconhecidos com segurança.
Todas as peças são em cedro e em tamanho próximo ao natural. A maioria é constituída de um único bloco, com exceção das mãos, que são móveis, fixadas por cavidades nas mangas. As únicas esculturas completas são as dos dois servos e os quatro primeiros apóstolos, mais diretamente visíveis. As restantes, de meio corpo e escavadas na parte posterior, repousam em suportes dissimulados por trás da mesa elíptica. No Passo da Ceia, quase não se nota a colaboração do 'atelier', e pela excelente qualidade de todas as imagens, supõe-se que pode ter havido apenas intervenção de alguns 'oficiais', mas que, com exceção à execução de partes secundárias, todas as imagens foram esculpidas pelo mestre Aleijadinho.
O acabamento final de todas elas é, naturalmente, em função da policromia, responsável também pela extraordinária impressão de unidade conferida ao conjunto. A predominância absoluta de tons pastéis, no Passo da Ceia, deve-se à opção feita por Manoel da Costa Ataíde de colorir apóstolos e personagens sagrados em tons claros e finamente matizados, reservando as cores fortes e agressivas para os algozes de Cristo.
In: Cidade dos Profetas, Sexta edição, dezembro de 2001.